Nas margens do Itapecuru, sul do estado do Maranhão, o conversador e ganancioso João Pita foi ganhar a vida. Lá, abriu uma pensão que dava suporte aos poucos caminhoneiros e aos inúmeros tropeiros que transitavam na estrada de chão que ligava e liga – agora pavimentada – os municípios de Balsas e Carolina, as duas cidades mais desenvolvidas da região nos anos cinquenta do século passado.
Enquanto João Pita fazia as vezes do garçon, dona Filomena, a esposa, garantia a execução das tarefas da cozinha com mais duas empregadas. Quem chegava de tropa dava um banho em suas montarias e um curto descanso aos animais, desde que a hora não fosse avançada para continuar viagem, o que justificaria o pernoite, em redes, na espaçosa varanda. Os poucos caminhões, também, estacionados debaixo de frondosas mangueiras, com caputs levantados, eram checados pelos zelosos choferes.
Mestre Uila e Nego Zé Biô, amigos inseparáveis, sempre trafegando um próximo ao outro, apoiando-se mutuamente em seus caminhões marca GMC-1954, tinham a pensão como um local de parada obrigatória. O almoço lá, feito com a boa mão de dona Filomena, adquiriu fama e até em São Luís se falava dele.
João Pita, com seu rádio a pilha que muito chiava, preferia ouvir as notícias pela boca dos viajantes, oportunidade em que dava vazão a sua fala represada em função do isolamento em que vivia, servindo a pequena clientela que, ao chegar, encomendava o almoço e ia tomar banho no rio.
Nesse vaivém da dupla Mestre Uila e Nego Zé Biô, o primeiro foi forçado a fazer uma parada obrigatória e o outro seguiu sozinho para Balsas.
Ao chegar à pensão do João Pita, Nego Zé Biô, famoso por suas espertezas, viu a oportunidade de ludibriar o avarento João Pita. Dirigindo-se, então, a um vizinho de mesa, puxou conversa, a propósito, bem no instante em que João Pita se aproximava com uma fumegante travessa cheia de galinha caipira com pequi.
– Agora eu me acabo! Esta galinha assanhou de vez a minha fome! Olhando matreiramente de lado, continuou: – Hoje em dia estão aproveitando tudo. Toda coisa tem serventia. Agora é a vez do couro de macaco!
– Como? – Perguntou-lhe o vizinho de mesa com ar de espanto.
-Tem um comerciante bem sucedido, lá em Carolina, o Edson Azevedo, que remete os couros, bem secos, em caixas fechadas – para não feder muito – direto para os EUA, de avião. Lá fazem bolsas chiques, finíssimas, com o couro passando por um processo industrial muito avançado e ainda colocam fivela de ouro. Onde? Onde já se viu enfeitar couro de macaco com ouro? Carga de couro de macaco! Ao invés de aprenderem a comer farinha…! No município de Carolina quase não se acha mais macacos!
João Pita, ao escutar essa prosa, invadiu-a.
– Que oportunidade! Vou buscar o restante da comida mas, me aguardem, não quero perder o restante dessa conversa.
– Vá homem! Tô com fome, mas tô com tempo! Tô esperando o nosso amigo Mestre Uila que vai almoçar aqui. Pode separar comida pra ele!
Servidas as duas mesas – e não havia mais clientes – João Pita, de pé, com as mãos na cintura e a barriga estufando um puído avental, provocou:
– Como é mesmo essa história de couro de macaco?
– Pois é! Ele compra por peça! Só couro de macaco erado, bem seco, bem tirado com a ponta da faca, nada de corte, só o buraco do chumbo. Um couro precisa dar, no mínimo, um palmo e meio da orelha até o pé do rabo. Este, não deve estrar na medida, mas não aceitam couro suro.
– Aqui na região, Nego Zé Biô, ninguém tem direito de assar uma espiga de milho! As roças só alimentam os macacos. Milho pra criar galinha e porco? Ninguém junta! Tudo que a gente faz é pros macacos. Nunca vi um outro lugar pra ter tanto macaco! Macaco é um bicho miúdo, mas se desse pra enfileirar os daqui, daria uma procissão de légua e meia… ou mais! Agora, com essa oportunidade, vou dar vergonha a eles. E já que você tá na estrada, no rumo de Balsas, já vou lhe encomendar uns apetrechos.
– Pera aí, Omi! Vá devagar! Se você tem uma boa espingarda lazarina, chumbo, pólvora, espoleta e cartucho, faça primeiro uma experiência. Mande uma pequena remessa de couro e veja se compensa!
– Moço! Até a colheita de milho vai render! Quero, agorinha, fazer o pedido!
O vizinho de mesa pediu a conta, acertou, despediu-se, mas antes, esboçando um sorrisinho sem-vergonha, falou:
– Vocês fiquem aqui com os macacos de vocês que eu já vou! João Pita, mal deu confiança e continuou:
– Vou precisar de 20 espingardas lazarinas, 4kg de polva elefante, 4kg de chumbo 3T e 40 caixas de espoleta GD.
– João! Entre devagar nesse ramo! Você tem o restaurante “Nossa Senhora da Guia”, a fazenda “Deus me Deu”, o gado, a porcada… você vai muito bem, obrigado! Tô vendo exagero na encomenda. Já se informou sobre o preço de uma lazarina? É mais ou menos o preço de uma vaca gorda ou de um porco que dê quatro latas de banha!
– Olha! Eu tô com o dinheiro reunido, amarrado com embira e no saco. Eu ia comprar uma posse que faz divisa com minha fazenda, mas esse negócio pode esperar. Vou me adiantar antes que outros aqui pelas redondezas descubram esse ramo. Todo mundo sabe que aqui é a terra dos macacos!
– Só me resta respeitar a sua empolgação! Como você tem faro pra bons negócios, tá vendo o tamanho da oportunidade que eu não tava enxergando! Fiz uma conta de cabeça, por alto, e considerando que uma espingarda, das boas, custa uns mil e quinhentos réis, separe, então, 45 mil para me pagar e talvez lhe sobrar um bom troco porque eu sei pedir desconto. E não vou esquecer a nota fiscal!
E assim combinaram.
Quando Nego Zé Biô pegou a estrada, João Pita contou a boa notícia para a esposa Filomena e ouviu:
– Se eu tivesse visto a tua afoiteza na hora, não teria deixado acontecer esta loucura, mas agora, o omi tá na estrada e o negócio tá feito. Por causa de tua esfomeação por dinheiro,
tu vai matar os coitado! O fogo do inferno te espera.
– Que nada muié! Tudo que Deus botou na natureza é para o omi se aproveitá. O pade já falô!
Ao chegar em Balsas, cinco horas depois chegou o amigo Mestre Uila e indagou:
-Que negócio maluco foi esse que você fez com o João Pita? Ele quis me explicar, mas a mulher, nervosa, atravessou a conversa e eu, com pressa, mal engoli a comida e peguei o teu rastro!
Ao relatar o baita negócio ao amigo Mestre Uila, ouviu:
– Você é um irresponsável, além de passar a perna naquele abestado, se ainda estava pouco, vai haver a maior chacina de macacos-prego desse país! E depois? Quando ele descobrir que foi enganado? Como é que você vai conter a fúria dele? Vinte lazarinas? Ele tem um caçador para pegar no coice de cada uma?
– Ele me disse que os meninos da vizinhança vão ocupar todas!
– Você não vai levar essa encomenda! Se fizer isso, quando for entregá-la, vou passar direto! Não vou testemunhar nada!
E assim, Nego Zé Biô o fez: entregou a carga e recebeu quarenta e um mil e quinhentos réis! Uma semana depois, no retorno de Carolina para Balsas, ao se aproximar da pensão, Mestre Uila, de longe, viu o marrom avermelhado cobrindo toda a cerca do quintal. Parou, desceu do GMC, esperou Nego Zé Biô e apontou no rumo da pensão:
No lugar da cerca de faxina vejo um muro marrom avermelhado…!
– Não se faça de besta! Aquilo tudo é couro de macaco estendido, secando!
– Você é um assassino! E ele, além de assassino, é um otário!
Alguns dias depois, de volta a Carolina, viram novamente o muro colorido e encostaram para almoçar. Nego Zé Biô comentou:
– Parece que a caçada tá rendendo!
– Falei pra você! Na semana que vem levo a primeira carga para o seu Edson Azevedo!
Em Carolina, oito dias depois, estava Mestre Uila na porta de um bar, tomando cerveja e Nego Zé Biô, dentro, jogando sinuca. Mestre Uila avistou, a aproximar-se, uma condução com bagageiro sobre o teto, carregada com uma carga imensa, bem amarrada. João Pita desceu, cumprimentou Mestre Uila do meio da rua e falou:
– O seu Edson Azevedo, agora, tem fornecedô, não vai ter falta de couro! Cadê o Nego Zé Biô?
Mestre Uila, despistando, já sentido cheiro de confusão, disse:
– Está na casa dele ou circulando por aí!
Quando João Pita saiu, Mestre Uila foi até o Nego Zé Biô e o alertou:
– É melhor você sair daqui e se prevenir. O João Pita passou com uma carga de couro de macaco que parecia o pão-de-açúcar!
Nego Zé Biô, com um sorriso amarelo, se mandou.
Ao chegar na imponente loja do distinto comerciante Edson Azevedo, o gerente lhe perguntou:
– Em que posso ajudá-lo?
– É negócio graúdo. Quero tratar direto com o seu Edson!
O gerente acomodou João Pita em uma sala e lhe pediu para aguardar. Instantes depois, Edson Azevedo entrou, cumprimentou-o e perguntou:
– Em que posso colaborar?
– Seu Edson Azevedo, tô com uma bonita carga lá fora. Quero lhe mostrar!
Já na calçada, Edson Azevedo lhe perguntou:
– O que é isso?
– É couro! Couro de macaco-prego! O senhor pode ficar sossegado que a cada mês, se compensar pra nóis dois, vai tá chegando couro de macaco, aqui, sem falhar o trato.
– Seu João! Há um grande mal-entendido, eu não comercializo, não compro e nem vendo esse tipo de mercadoria e nunca ouvi alguém falar desse ramo!
Percebendo a cilada em que se metera, João Pita, com a mão no cabo do punhal, explodiu em fúria.
– Vou matar o filho de uma ronca e fuça que fez isso comigo! – Sem escutar qualquer ponderação do educado comerciante, ordenou o motorista que saísse com ele à procura do Nego Zé Biô. Foi ao bar, foi à residência, circulou no centro da cidade e nada de encontrá-lo. Mas, lá na rua da areia, deu de cara com Nego Zé Biô, saltou da condução, leve como um gato e falou, com a mão segurando o cabo da lambedeira, pronto para desembainhá-la.
– Nego Zé Biô…! se prepare pra morrê! Você vai enganar pai de famia lá nos quintos do inferno!
– Calma! Muita calma João Pita! Está havendo um grande engano! O que houve? Me conta e vamos ajeitar isso, homem de Deus!
– O seu Edson não compra couro de macaco-prego…!
– Claro! Macaco-prego, não!
– E como é que você me botou pra fazer essa matança toda?
– Meu Deus! Você é um distraído! Não presta atenção nas conversas! Naquele dia você não entendeu a história, mas eu também fui descuidado, não vi que você estava enganado. Eu nunca, juro por Nossa Senhora, falei em macaco-prego!
– Como não, Nego Zé Biô?
– Eu falava de macaco, sim! Mas era de macaco do c* pelado que eu estava falando! – É uma raça difícil de se encontrar! Você se confundiu! Acabe com esta fúria! Você é um pai de família, um cidadão honrado! Se você me matar, vai estragar sua vida! Depois, se fugir, o que é muito difícil, deixa dona Filomena e os filhos pequenos para trás! Se for pego, o que é quase certo, também, do mesmo jeito, ainda é uma desgraça! Vamos lá pra minha casa, tomar um café, conversar e botar a cabeça no lugar. Você é um homem novo e trabalhador. Oportunidades, sempre vão aparecer. Todo homem de negócios, como nós dois, vira e mexe sofre um prejuízo, mas tudo se ajeita!
– João Pita, com os olhos no chão, aos poucos, foi se acalmando e Nego Zé Biô, vendo a sua vulnerabilidade emocional, esticou o braço e falou:
– Aperte a minha mão e me dê um abraço bem apertado! Vamos sair daqui! Já estamos juntando curiosos!
Em prantos, João Pita foi abraçado e consolado por um Biô suado que o afagou passando uma mão em sua cabeça.
Dali mesmo João Pita se foi, não quis o café oferecido.
– Duas semanas depois, Mestre Uila e Nego Zé Biô, este último, todo desconfiado, pararam na pensão. Na cerca de faxina, já não havia couro de macacos. Apenas duas redes, com bonitos labirintos, arte de dona Filomena. O inclemente sol do sul do Maranhão, logo, logo, trataria de enxugá-las. Mestre Uila, dando três tapinhas na barriga, perguntou onde era a sentina. Apontaram-lhe uma casinha lá no fundo do quintal. Na volta, com cara de alívio, mas intrigado, dirigiu-se à dona Filomena.
– Contei 42 macaquinhos novos aí no quintal. Por qual razão desse mundo o João Pita ainda tá incutido com macacos?
– Tô botando orde, Mestre Uila. Fiz ele e os caçadô irem atrais desses bichin que estavam morrendo de fome, sem mamar. Ele vai criar tudin na mamadeira, até ficarem no ponto de voltar para a mata! Ah vai! Que vai, vai!
– Quantos couros ele levou naquela carga?
– 418!
– Nossa! Então, lá no mato, morreram muitos macaquinhos de fome! O bicho homem, dona Madalena, não tem limites!
– Sim, é verdade! Mas o daqui, de agora em diante, vai andar puxado pelo cabresto!
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JOSÉ EPIFANIO PARENTE AGUIAR
Sou um Baby Boomer, portanto um véi esquisito para as gerações X, Y, Z e um monstrengo para a geração Alfa.