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‘A verdadeira voz do Brasil’: em Belo Horizonte, Rádio

“Um serviço de alto-falante, no morro do Serrão”. Há 48 anos entrava no ar pela primeira vez a Rádio Favela, “a verdadeira voz do Brasil”. Assim como na música eternizada por Leci Brandão, no alto do Aglomerado da Serra, favela de Belo Horizonte, moradores usavam o rádio para se comunicar e “alertar a favela inteira” sobre tudo o que as outras rádios não falavam.

Criada por Misael Avelino, a Rádio Favela, hoje conhecida como Radio Autêntica Favela FM, começou com transmissores improvisados que passavam pelas casas da Vila Fátima, na tentativa de se esconder da polícia e da política que perseguia o projeto de comunicação popular que funcionava de forma clandestina. Às vezes em que a rádio teve os transmissores lacrados e os materiais destruídos não foram capazes de conter o ímpeto da iniciativa.

Símbolo da resistência popular e da luta por justiça social, ao ousar denunciar as mazelas do Aglomerado da Serra, a violência policial e o abandono da população mais pobre, a rádio incomodou poderosos e só resistiu em razão da força dos moradores que, pela primeira vez, ouviam as suas vozes refletidas nas ondas sonoras.

A jornalista Amélia Gomes, que teve a rádio como o seu objeto de pesquisa de mestrado, destaca que a Autêntica Favela FM é uma rádio popular que, além de suas origens, cumpre um papel social fundamental para a população mais vulnerabilizada.

“Identificar um veículo enquanto popular é perceber se ele promove a cidadania, a autonomia e o empoderamento do povo. E a gente vê isso muito nitidamente na história da Rádio Favela, desde os primeiros anos em que ela surgiu até os dias atuais”, comenta.

Amélia, que foi apresentadora da rádio enquanto trabalhou no Brasil de Fato MG, faz questão de lembrar que a comunicação é um direito constitucional que, na prática, não é exercido de forma plena. Para ela, ao contrariar o poder vigente e manter a rádio funcionando mesmo durante a ilegalidade, o projeto ajudou a garantir a dignidade da população da região.

“A existência da Rádio Favela é, na prática, a garantia de um direito fundamental que nos é negado: o direito à comunicação. A gente não tem acesso a veículos de comunicação, e, por mais que esteja lá na Constituição a garantia do direito à comunicação, na prática, ele não existe. Então, ter a Rádio Favela como esse norte, esse farol, para nós, é muito importante”, explica.

“A Rádio Favela também prova e ressalta a necessidade de termos acesso a esse direito, porque ele é uma ponte para uma série de outros direitos. A partir do momento em que você tem o poder de falar, de comunicar, de denunciar e de questionar, você também tem mais potencialidade para conquistar outros direitos, como o direito à moradia, o acesso à educação, à saúde, etc”, continua Amélia Gomes.

‘A rádio me fez um comunicador’, afirma locutor

O locutor Ronan Oliveira conta que a escolha por trabalhar na Rádio Favela mudou a sua vida, dando um novo senso de utilidade para a profissão. Entre idas e vindas, ele está na Autêntica FM desde 2008.

“A liberdade que a gente tem de atuar é algo fundamental. Especialmente nas comunidades mais carentes, onde o rádio é o principal veículo de comunicação, informação e cultura. Fez com que eu crescesse muito, tanto como profissional quanto como pessoa, aprendendo a entender as demandas e mazelas das pessoas mais carentes. Foi ali que dei o meu primeiro passo como comunicador, em uma rádio que faz um trabalho educativo e comunitário de verdade”, relata.

Ao ser questionado sobre o papel da comunicação popular em sua vida, Ronan destaca que a rádio desfaz o estereótipo negativo que é construído socialmente sobre as pessoas que vivem nas favelas e torna a comunicação não só um trabalho, mas uma forma de servir.

O locutor sabe que a sua voz chega muitas vezes onde o Estado só chega enquanto braço armado. Com isso, ele também ressalta o papel social da rádio.

“Eu, particularmente, quando estou no ar de manhã, dou destaque às pautas relacionadas ao transporte público, saúde, políticas públicas, trânsito e até alerta sobre o perigo de enchentes causadas por chuvas fortes, que frequentemente atingem as áreas mais vulneráveis. Informar as pessoas é fundamental. Muitas vezes, uma simples informação, como um aviso de falta de água ou luz, faz uma grande diferença para a população”, explica.

“A favela não é apenas um lugar de vulnerabilidade social. É um espaço cheio de empreendedores, artistas, trabalhadores da construção civil e outros talentos. A favela é isso: potência e oportunidades. Muitos projetos sociais surgiram depois da Rádio Favela FM, potencializando talentos e transformando vidas”, continua.

Programa Brasil de Fato MG

O Brasil de Fato MG possui um programa diário na Rádio Autêntica Favela FM, transmitido de terça a sexta-feira, sempre ao meio-dia, com uma visão popular sobre os principais acontecimentos de Minas Gerais, do Brasil e do mundo.

A ouvinte Valéria Borges conta sobre a identificação com a rádio e com o programa.

“Eu ouço a rádio porque é favela, assim como eu, que sou da Pedreira Prado Lopes . A rádio fala a minha língua, o jornal parece que é gente da gente falando, é fácil de entender. Aqui na PPL, eu vejo as velhinhas, os botecos sempre ligados, porque a rádio fala com a gente”, comenta.

Atualmente, a emissora chega a quase 3 milhões de ouvintes mensais, sendo 1 milhão apenas no aplicativo Rádio Autêntica Favela FM (disponível para android).

Nota da redação

A Rádio Favela mudou muitas vidas, inclusive a minha. Sou cria do Serrão e cresci conhecendo a história da rádio. Hoje, apresentando o programa Brasil de Fato MG, vejo o meu esforço se voltando para os meus. Sempre que vou ao Aglomerado, onde minha família ainda mora, recebo o retorno de pessoas que me viram crescer, dizendo que me ouviram e que me ouvem diariamente.

Trabalhar na rádio é uma forma de aquilombamento. Ainda que a vida tenha de alguma forma me afastado fisicamente da favela, é para lá que eu retorno todos os dias ao apresentar o programa. É a favela pela favela. Vida longa à Autêntica Favela FM.

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Ana Carolina Vasconcelos

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